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Antropóloga investiga em livro o PCC, a maior facção criminosa do país


“Bonde”, “cagueta” e “perreco” são algumas das palavras repetidas por presos nas conversas com a antropóloga Karina Biondi. Elas estão reunidas nas últimas páginas de Junto e misturado — Uma etnografia do PCC, livro lançado pela Editora Terceiro Nome que investiga a principal facção criminosa do Brasil, o PCC (Primeiro Comando da Capital). Foram quase seis anos de uma “pesquisa pouco ortodoxa”, iniciada após a prisão do marido, no início de 2003.

São homens divididos entre Justiças — a divina, a humana e a estatal, mas que paradoxalmente não respondem a uma legislação interna. Segundo Karina, o PCC é um grupo que não carrega um Código, com leis e punições. Na verdade, o que ocorre é um “debate incessante sobre ‘o que é o certo’ e sobre como conduzir sua existência ‘pelo certo’". Para os presos, não existem leis internas ou julgamentos, mas há um regulamento que prevê recomendações para nortear as ações dos "irmãos" do Comando; se tivesse que usar uma metáfora para explicar essa adaptação, a antropóloga falaria em “jurisprudência".

O assunto delicado não intimida Karina. Incisiva em suas respostas durante a entrevista concedida a Última Instância, a autora fala sobre como surgiu a ideia para uma pesquisa dessa complexidade, a importância da facção perante a sociedade brasileira, o significado de Justiça para os criminosos do PCC e como eles mesmos criaram um método próprio para garantir o funcionamento da organização.

Além disso, a antropóloga relembra a transformação sofrida pelo Primeiro Comando ao longo de sua história e revela como as questões internas podem alterar o dia a dia de uma penitenciária.

Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Última Instância – O PCC (Primeiro Comando da Capital) é a principal organização criminosa do país. Como surgiu a oportunidade de realizar uma pesquisa com esse tema?

Karina Biondi - Meu marido foi preso em 2003, quando eu cursava graduação em Ciências Sociais na USP (Universidade de São Paulo). Em uma das visitas [na prisão], me veio a ideia de aproveitar esse acesso para elaborar um projeto de pesquisa, que chegou a receber o primeiro prêmio de Antropologia e Direitos Humanos para graduação. Essa conquista me incentivou a dar continuidade à pesquisa na pós-graduação, que resultou nesse livro.

Última Instância – Em algum momento, a pesquisa ficou perigosa?

Karina Biondi - Nunca sofri nenhum tipo de controle. Na verdade, ninguém nunca pareceu dar muita importância à pesquisa. Mas durante a realização, vivi momentos que me fizeram sentir muito medo, como o que envolveu uma tentativa de fuga. Apesar da tensão envolvida, essa experiência e os relatos posteriores a esse acontecimento foram muito importantes para o desenvolvimento de diversas das reflexões que faço.

Última Instância – Para as pessoas que não têm esse tipo de acesso, essa proximidade à facção, é difícil imaginar as regras de funcionamento. Como se dá a regulação interna feita pelo PCC? Existem julgamentos e punições de membros? Existem leis?

Karina Biondi - Não existem julgamentos no PCC, já que ele não opera no registro jurídico. Ao vermos o funcionamento do PCC, é tentador chamar as orientações e os procedimentos que encontramos de leis ou regras. Mas estaríamos, com isso, fazendo um espelhamento da forma social que conhecemos. Procurei deixar essa metáfora de lado e levar a descrição adiante. O que encontrei foi uma forma social que não funciona na chave jurídica, onde não existe um código ou leis e punições prescritas àqueles que as transgridem. O que existe é um debate incessante sobre "o que é o certo" e sobre como conduzir suas existências "pelo certo". Se fosse para usar uma metáfora, eu diria que "jurisprudência" funciona melhor do que "lei". O PCC não opera na chave da lei ou da regra. Ele não se conforma a um registro jurídico, onde para qualquer regra há uma punição.

Última Instância – E como funciona essa regulação por parte do PCC? Ela se relaciona com a Justiça?

Karina Biondi - Não existem leis, mas podemos dizer que existem algumas orientações ou recomendações que resultam de amplos debates. O consumo de crack no interior das cadeias, por exemplo, não é evitado por temor a sanções legais. Ele é evitado porque, segundo os prisioneiros, o crack é uma máquina de produzir "nóias", ele destrói a dignidade humana e produz morte. Em outras palavras, o crack é uma ameaça à "paz entre ladrões". Nunca ouvi ninguém questionando a proibição do crack e tampouco vi alguém deixando de seguir essa orientação.

Durante o trabalho de campo, me deparei com outras formulações muito interessantes para pensar essa relação entre o PCC e as leis da Justiça. Durante uma rebelião, enquanto mantinha funcionários como reféns, um preso advertiu outro por ter quebrado o registro de água. Perguntei o motivo da advertência e ele me respondeu: “porque é crime, é dano ao patrimônio”. Não há uma regra no PCC que impeça algum preso de quebrar o registro de água durante uma rebelião. No entanto, esta ação é avaliada circunstancialmente. De um lado, ao afirmar que essa ação é crime, o preso estava dizendo que ela poderia resultar em mais tempo de pena aos rebelados. De outro, para o preso que quebrou o registro, o que contava era o benefício que seria garantido para toda a população daquela prisão, pois a administração não poderia mais fechar o registro, como vinha fazendo. Ambos tinham argumentos para sustentar que estavam certos, independente da conformação do ato à lei. Ou seja, a lei poderia ser um fator importante, mas também poderia ser considerada menos importante do que as condições de higiene no cotidiano daquela prisão.

Última Instância – Então o que é a Justiça para os membros do PCC?

Karina Biondi - Existem várias Justiças a que os relacionados ao PCC se referem. Entre elas, a Justiça presente em seu lema, a Justiça Divina, a Justiça dos Homens. Durante a minha pesquisa, não foquei na avaliação que eles fazem da Justiça Estatal, mas são bastante recorrentes as referências à Justiça como aquela que pune os pobres, como um instrumento de opressão do Estado.

Última Instância – De alguma forma um dos papéis do PCC seria o de intermediar a relação de presos com a Justiça? Não diretamente, por ser uma organização ilegal, mas com pressões sutis.

Karina Biondi - Acredito que seria necessário estudar as instituições Judiciárias para ver que tipos de pressões recaem sobre elas. Mas meus dados revelam que, por meio de pressões mais ou menos sutis, o PCC, de certa forma, faz essa intermediação entre presos e o aparelho burocrático das instituições prisionais. A legislação que rege o funcionamento das unidades prisionais de São Paulo concede grande liberdade ao dirigente de cada unidade. Assim, as condições para cumprimento da pena só podem ser negociadas com ele.

Última Instância – Atualmente, quantos são os presos vinculados ao PCC?

Karina Biondi - Não vejo o PCC como o resultado da soma de seus membros, os chamados "irmãos". Já que o Comando não é o que costumamos chamar de "grupo", que seria formado por membros recrutados. Por isso, sua presença em uma prisão não depende da existência de "irmãos" ali. Mas não há contradição. O problema é pensar em termos de "vínculo", o que pressupõe a existência de duas unidades totais:presos e PCC. O Comando existe como uma força que atravessa esses presos e, ao mesmo tempo, é atualizada por eles. Essa forma de existência não requer a ligação entre membros que seriam vinculados. De fato, os "irmãos" sequer conhecem todos os outros "irmãos", esta é uma informação que nem eles próprios têm.

Última Instância – Existe algum tipo de relação entre as ações do PCC e a diminuição dos homicídios dentro das penitenciárias? E fora?

Karina Biondi - Nessa questão dos homicídios dentro e fora das penitenciárias, as informações que eu tenho foram os próprios prisioneiros e moradores das periferias que me disseram. Uma das orientações para as quais estão voltadas as ações do PCC é o que chamam de "paz entre ladrões". A ideia é que, unindo-se, poderiam resistir ou lutar contra o que consideram "abusos" do sistema penitenciário. Nesse sentido, procura-se evitar práticas que levariam a litígios e, quando eles aparecem, busca-se solucioná-los de forma não violenta.

Essas práticas fizeram diminuir o número de mortes como soluções para esses litígios entre "ladrões". Não só os prisioneiros, mas muitos moradores de favelas atribuem ao PCC a responsabilidade pela queda do número de homicídios. O “não pode mais matar” (nas “ruas”) me foi dito pela primeira vez em meados de 2006, por prisioneiros. Logo depois, ouvi de uma moradora de uma favela de São Paulo que, se antes ela se deparava diariamente com um cadáver na porta de sua casa, hoje, “graças ao PCC, isso não acontece mais”.

As informações sobre a influência do PCC na diminuição do número de homicídios no Estado de São Paulo, que antes apareciam para mim apenas em relatos de experiências como essa, foram reforçadas pelas estatísticas oficiais. Se há outros motivos para esta queda, não os encontrei nos relatos daqueles que vivem nas áreas onde ocorrem a maioria dos homicídios.

Última Instância – Você poderia citar um acontecimento crucial na história da facção?

Karina Biondi - O acontecimento que mais impactou o PCC foi a adição da "Igualdade" ao lema "Paz, Justiça e Liberdade". Com isso, o Comando sofreu profundas transformações (que não param de se transformar) e terminou por abandonar a formação hierárquica piramidal que possuía. Essas transformações aparecem em todos os âmbitos das experiências prisionais. O que o preso quer dizer com “ninguém é mais do que ninguém”, “ninguém é obrigado a nada”, “é de igual”?

Não basta ouvir o que eles têm a dizer, é preciso levá-los a sério. Foi isso que procurei fazer em minha dissertação e que permitiu enxergar no PCC uma formação que, por um lado, não pode ser caracterizada como hierárquica, mas, por outro, tem a hierarquia como um fantasma que não para de aparecer em seu interior. Os prisioneiros tecem reflexões riquíssimas a esse respeito, reflexões que são indissociáveis de suas próprias experiências cotidianas e da constituição do PCC hoje.

Última Instância – E qual é o papel o grupo representa frente à sociedade? E para os membros?

Karina Biondi - Entre os que estão relacionados ao PCC, o grupo aparece como uma ética, uma forma de conduzir suas existências. Nas prisões, ele aparece também como uma instância reguladora das relações entre presos e destes com a administração das unidades prisionais. Por isso, o PCC representa grande responsabilidade aos seus membros. Quanto à sociedade, não consigo vê-la como uma totalidade coesa a ponto de tecer uma única representação acerca do PCC ou a ponto do PCC, que já não é uma totalidade, poder representar um papel.


Fonte: http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/47333/antropologa+investiga+em+livro+o+pcc+a+maior+faccao+criminosa+do+pais+.shtml


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