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O período histórico da civilização egípcia tem início por volta de 4.000 a.C., em decorrência dos agrupamentos estabelecidos às margens do Rio Nilo. Os primitivos clãs, transformados em províncias, tiveram seus chefes elevados à categoria de reis. Entre os clãs, havia o estabelecimento de relações decorrentes da agricultura realizada às margens do Nilo (responsável pela produtividade da terra em uma região eminentemente desértica). A sazonalidade do Rio Nilo, por sua vez, da qual decorreriam períodos de contenção possibilitadora do estabelecimento de plantações em suas margens férteis e períodos de cheias devastadoras, tornaria necessária a reunião dos agrupamentos, de forma a centralizar os esforços na construção de obras reguladoras das intempéries naturais (JAGUARIBE, 2001). Surgiriam assim, na região, os reinos do norte e do sul (JAGUARIBE, 2001). Há polêmica acerca da predominância exercida entre os reinos, havendo quem defenda que inicialmente o reino do sul tenha subjugado o norte, posteriormente invertendo-se a relação (DOBERSTEIN, 2010, p. 40-41; JAGUARIBE, 2001). De toda forma, por volta do ano 3.300 a.C., teria havido a unificação dos dois reinos em torno da figura do faraó. Segundo Claudio de Cicco (2006, p. 3), essa fusão daria origem à divisão social que prevaleceria na antiga sociedade egípcia, em que os povos do norte, de cor mais clara (cultivadores de uma mitologia panteísta mais elaborada, decorrente da maior proximidade com a cultura oriental), assumiriam o lugar de classe dominante (de onde emergiriam os grupos dirigentes), enquanto os povos do sul, de cor mais escura (introdutores dos cultos anímicos), assumiriam o lugar de classe dominada.

O Egito se constituiria, a partir de então, em uma sociedade extremamente hierarquizada, tendo o Faraó no topo (considerado a encarnação do deus Horus - o deus-falcão) (HÖFFE, 2003, p. 16) e tendo os escravos no nível mais baixo. Entre eles, teríamos ainda as classes dos sacerdotes, dos guerreiros, dos escribas e dos artífices e camponeses. Tendo em vista que a civilização egípcia teria perdurado por um período de mais de três mil anos, muitas alterações sociais e políticas acabariam sendo vivenciadas, não permitindo que sejam estabelecidas características pontuais de sua organização social de forma demasiadamente estáticas. Sabe-se que as relações de classes e gêneros sofreriam algumas mudanças com o passar do tempo, assim como a utilização do trabalho escravo, que seria mais predominante em algumas épocas que em outras (alguns autores fariam ainda referência a uma espécie de revolução social ocorrida por volta de meados do segundo milênio a.C., que alterariam de forma relevante as relações sociais e os valores da sociedade egípcia). Da mesma forma, várias seriam as divisões sociais efetuadas pelos historiadores, variando geralmente entre três e nove classes sociais distintas. Heródoto estabeleceria uma divisão da sociedade egípcia em sete classes sociais. Jaguaribe (2001, p. 156), por sua vez, preferiria uma divisão em basicamente três classes, quais sejam: classe alta (formada pela família real, a nobreza, os altos funcionários, os grandes sacerdotes e generais), classe média (formada pelos funcionários intermediários, sacerdotes, comerciantes e fazendeiros) e classe baixa (formada pelos artesão e camponeses livres). Abaixo das classes estabelecidas, teríamos ainda os escravos (JAGUARIBE, 2001, p. 156).

Por conta da supremacia religiosa, os sacerdotes comporiam a aristocracia que legitimava o poder do Faraó, estabelecendo os limites para sua atuação e as regras de Direito que organizariam as relações sociais, funcionando também como instância máxima de apelação. O faraó e os sacerdotes se constituiriam nos maiores proprietários de terra, gozando os últimos de privilégios e isenções tributárias, disputando durante alguns períodos históricos a hegemonia do poder político (JAGUARIBE, 2001).

A organização econômica era essencialmente voltada para a produção de grãos, realizada pelos camponeses, sendo a maior parte armazenada nos depósitos reais, para a provisão interna e para a comercialização (JAGUARIBE, 2001). O comércio realizado pelo Rio Nilo, e a posterior construção de canais ligando os territórios do Império, consubstanciada ainda pelas invasões militares dos territórios próximos, possibilitaria um incremento substancial na riqueza do Egito. Além disso, a extração de minérios era também empreendida (PINTO, 2010, p. 27) como forma de obtenção de matéria-prima para fabricação de objetos e para a acumulação das riquezas necessárias ao funcionamento da administração central, que tinha ainda com fonte de receitas os tributos e as rendas provenientes do comércio (JAGUARIBE, 2001). O trabalho, comumente associado ao trabalho escravo no tocante à construção civil, era realizado mediante paga in natura, sendo empregado na construção de obras públicas e mesmo nas famosas pirâmides dos Faraós, aos quais grandes recursos materiais e humano eram destinados, o que levaria em alguns casos à ocorrência de crises econômicas (JAGUARIBE, 2001). Há ainda notícias de que a primeira greve de trabalhadores da história teria ocorrido no Egito, motivada pelo atraso no pagamento dos salários (MELLA, 1998, p. 258).

O que se conhece do direito egípcio chegaria até nós por fragmentos de contratos, testamentos, decisões judiciais, atos administrativos e referências em textos sagrados e narrativas literárias (PINTO, 2010, p. 36 ). A primeira legislação que se tem conhecimento é o chamado Papiro de Berlim, da VI Dinastia (2420-2294 a.C.) (GUSMÃO, 2006, p. 294). Ainda, segundo Gusmão (2006, p. 295), o direito internacional parece ter se iniciado no Egito, tendo-se verificado um tratado de aliança e paz celebrado por Ramsés II (1297-1231) com o rei hitita Hattusibis III.

Dada a organização da propriedade imobiliária entre as classes dominantes, Gusmão (2006, p. 294) indicaria que “a compra-e-venda de terras não era conhecida, reduzindo-se o direito de propriedade e contratos a locações de serviço e a transações com bens móveis, objetos de propriedade privada”. No âmbito das obrigações, o juramento, com invocação do nome do Faraó, funcionava como garantia para seu cumprimento (GUSMÃO, 2006, p. 294).

Apesar do caráter patriarcal, em determinadas épocas a mulher passaria a gozar de certas liberdades, podendo chegar mesmo a desempenhar as funções de sacerdotisas, ou até mesmo rainhas (SEIXAS, 1998, p. 32). No casamento (considerado uma das formas de contrato) (BAKOS, 1994, p. 43), a mulher mantinha a propriedade dos bens. Inicialmente só o marido poderia obter o divórcio; mais tarde, na dinastia ptolomaica (séc. VI a.C. a I d.C.), a mulher conquistaria esse direito (GUSMÃO, 2006, p. 294).

No âmbito penal, as punições mantinham o caráter de severidade herdados dos povos primitivos, sendo que algumas que chegaram até nós indicam: para o perjúrio e o homicídio, pena de morte; para o parricídio, a morte na fogueira (GUSMÃO, 2006, p. 295); para o falso testemunho, a mesma pena infligida ao crime de que falsamente se acusava (CICCO, 2006, p. 5); para o adultério, mutilações e vergastadas (mas, se a mulher adúltera estivesse grávida, a execução da pena só ocorria depois do parto) (GUSMÃO, 2006, p. 295); o aborto e o infanticídio eram punidos com vexações públicas da mulher; para o furto, escravização do ladrão ou mutilação (GUSMÃO, 2006, p. 295). Assim, segundo Gusmão (2006, p. 295), “bastonadas, mutilações (ablações das orelhas, do nariz, da língua ou das mãos), exílio, lançamento à fogueira com mãos e pés amarrados, eram as penas mais usadas no direito penal egípcio”. A tortura era admitida, não só aos acusados como também às testemunhas (GUSMÃO, 2006, p. 295).

Não obstante, além da aplicação do direito, existia uma concepção de justiça na sociedade egípcia, representada por Maat, deusa da justiça, que estaria ligada à ideia de uma lei reguladora e organizadora do sistema de coisas, numa noção de eterna ordem do Universo (PINTO, 2010, p. 36). Para os egípcios, Maat estava vinculada à moral e a padrões de comportamento no convívio humano, assim como à justiça divina a ser aplicada após a morte, baseada em uma lei cosmogônica representada materialmente na figura do rei (HÖFFE, 2003, p. 16). Justiça cuja ideia central era a retribuição (em que o bem compensa e o mal se vinga), sendo que o respeito a seus preceitos importaria, além das recompensas obtidas após a morte, o reconhecimento obtido nas tarefas desempenhadas no dia-a-dia, como o exercício de cargos públicos, a estima de outras pessoas, a memória dos pósteros e um túmulo monumental (HÖFFE, 2003, p. 16-18).

No Egito, ao Faraó cumpriria velar pela vigência do princípio de justiça simbolizado por Maat (PINTO, 2010, p. 36), e o ocupante do cargo superior da organização judiciária era considerado sacerdote da deusa (LEOCIR, 2010, p. 57; HÖFFE, 2003, p. 17). Os tribunais comuns não tinham competência para julgarem delitos eminentemente morais, representados na cultura egípcia pelos atos de se vangloriar, proferir palavras supérfluas, espionar, brigar, etc. Contudo, comportamentos como os citados, por representarem ofensas a Maat, seriam devidamente julgados no tribunal dos mortos (HÖFFE, 2003, p. 17). Dessa forma, possível verificar já na sociedade egípcia uma clara distinção entre direito e moral, cabendo à Justiça divina o julgamento de atos que contrariassem ambos os aspectos (HÖFFE, 2003, p.18).

Uma oração destinada ao Deus Osíris (que receberia os mortos e seus bens na outra vida), datada de 1.152 a.C, foi encontrada no papiro de Neferubenef (DELUMEAU; MELCHIOR-BONNET, 2000, p. 20). Tratar-se-ia de uma oração destinada ao defunto, por conta do ato de seu recebimento pelo deus Osiris no tribunal dos mortos, em que estariam presentes 42 divindades:

“Que vos seja prestada homenagem, deuses que estais na corte das duas justiças. Vim à vossa morada, sem mal e sem iniquidade, e não há ninguém a quem eu tenha prejudicado [...] Livrai-me, pois, protegei-me, não testemunheis contra mim diante do grande deus Osíris.” (DELUMEAU; MELCHIOR-BONNET, 2000, p. 20).

Depois disso, o espírito do falecido deveria enfrentar a prova decisiva, que se constituiria na pesagem das almas:

[...] sobre um prato da balança, o coração de Neferubenef, e sobre o outro, a pena de avestruz, símbolo da deusa da verdade e da justiça, Ma’at. Anúbis, deus da mumificação, verifica de que lado pende a balança. Se o coração for tão leve quanto a pena, Neferubenef passará pelas portas do reino de Osíris e provará com os justos os prazeres do campo yarou; os maus, por sua vez, se tornarão presa do monstro Ammit, devorador de mortos. (DELUMEAU; MELCHIOR-BONNET, 2000, p. 20).

Verifica-se, assim, que as ideias de balança e retribuição por nossos atos (punição ou recompensa), que acompanharão as principais concepções de justiça até os dias atuais, encontram-se presentes já na cultura do antigo Egito.

Otfried Höffe (2003) ofereceria ainda o aspecto de compaixão elaborado a partir de Maat, que dá ensejo à possibilidade de abrir mão da vingança enquanto retribuição e o estabelecimento de uma “libertação abrangente da miséria e da aflição”, o que viria a ser retomado pela tradição judaico-cristã (HÖFFE, 2003, p. 16-18). Segundo o autor, integraria assim no conceito de Maat as ideias de ordem, dominação e honradez, como também as ideias de felicidade insuperável e salvação. Ainda, para José das Candeias Sales (apud PINTO, 2010, p. 36), “maat possui um conteúdo e uma vertente social, ética e cósmica que confere direta e expressamente ao faraó a responsabilidade de estabelecer a Justiça, a Paz, o Equilíbrio e a Solidariedade social e cósmica da sociedade terrena.” Assim como algumas das concepções verificadas desde os povos primitivos, esses conceitos acerca da ideia de justiça verificados a partir da civilização egípcia iriam se manifestar em diversas outras culturas ao longo da história, muitos dos quais prevalecendo até os dias atuais.


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